Inter-existência, ativando novas e antigas estruturas

Qual o seu papel na grande virada? Você considera que atua nas bordas da transformação ou se vê no centro, onde o atual ainda é preservado e a previsibilidade traz mais conforto emocional?
A vida nos mostra o quanto é difícil mudar nossos hábitos. Mesmo quando há um volume de informações suficientes que mostram seus efeitos. Poderíamos estar falando de parar de fumar ou de comer carne. Para quem quer continuar fazendo o que está fazendo, não faltam argumentos que justifiquem a escolha. Estamos vivendo este momento em relação ao capitalismo, a sociedade de consumo e o sentido do trabalho. Ligue a televisão e verá que as propagandas de carro, por exemplo, continuam lá sem repensarem um miligrama de qual pode ser o papel do setor automotivo neste momento de COVID-19.

O mundo como o conhecemos está em colapso. Mas faz tempo. Não é de agora. Em 1992 a ativista ambiental canadense Severn Suzuki calou por 6 minutos governantes que estavam presentes na ECO 92, o segundo maior evento mundial sobre meio ambiente, dizendo que os adultos deveriam mudar seu modo de agir. Para ela chegar lá, muitas pessoas vieram antes e continuaram depois. Em 2018, 26 anos depois, a ativista ambiental sueca de 16 anos Greta Thunberg aparece para o mundo com suas greves pelo clima às sextas-feiras. Em 2019 a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, colocou a comunidade, a conexão cultural e a equidade no bem-estar como prioridade no orçamento nacional, tirando o foco do crescimento econômico e produtividade, lugar comum dos orçamentos. Nos últimos dias Luiza Trajano, presidente do conselho de administração do Magazine Luiza, foi uma das vozes junto ao setor empresarial pedindo que não demitam os funcionários, sem deixar de cobrar dos órgãos públicos medidas urgentes. Exercitando muito bem o E ao invés dos gritos de OU (ou salvamos vidas ou matamos as pessoas de fome). 

O mundo como o conhecemos está em colapso ou em ruptura?

O reforço ao estereótipo de gênero por uma ótica negativa faz com que os valores femininos não sejam valorizados nesta sociedade de mercado. A essência da espiritualidade feminina passa por confiar e se apoiar; falar a própria verdade; silenciar, ouvir e respeitar; compartilhar a experiência pessoal; aceitar a responsabilidade em relação a si e ao mundo. E aonde você acha que os valores femininos estão? No centro ou na borda?

A desintegração da cultura de uma sociedade de consumo capitalista hiper individualista neste curto período de meses é aquela deixa para experimentarmos uma sociedade que sustenta a vida. Só que essa mudança será sentida e vivida em pequena escala. Com sorte você irá vivenciá-la. Muitas pessoas passarão por este momento e lembrarão só como uma época muito ruim e que bom que “tudo voltou ao normal!”. Mas a grande virada não prevê voltar ao que era. Muitos já tomaram a pílula vermelha (assistiu Matrix?) e estão atuando nas bordas de forma incansável. Dia após dia uma boa parcela da humanidade olha para ambas as pílulas e se decide pela azul.

Nós da Tistu estamos gratas à internet e plataformas online que nos permitem exercer nosso trabalho, principalmente para criar conexões sociais nestes tempos difíceis. Esta é a real oportunidade para criarmos redes de suporte resilientes nas comunidades de amigas, familiares e de trabalho. Sem essas redes, ficaremos esgotadas por tantas sessões online que mais nos sugam do que nos alimentam. Sem elas será só a reprodução do lado ruim do mundo offline no online. Sem elas é manter tudo como era.

 Você fica desconfortável na borda da transformação?

Na nossa jornada de atuação nos vemos ajudando as pessoas a serem melhores ativistas – mais resilientes, mais criativas, mais autorresponsáveis, mais sensíveis ao invisível. Como? Levando-as a abraçar a incerteza e a ambiguidade. Perto e logo depois da borda temos um mundo onde os mapas ainda não foram desenhados. É um ativismo profundo mergulhar em si mesma e ter múltiplas perspectivas sobre sua atuação na complexidade. Neste texto, ativista é toda e qualquer pessoa que se permite mudar e dar um passo rumo à borda. É uma demanda evolutiva pessoal muito poderosa que tem de ser vivida.

Não há escolha.

Mas tem quem queira adiar esse mergulho. O refúgio óbvio é a prática espiritual como anestesia, já querendo ver o lado bom da coisa sem nem conseguir sustentar viver a dor. Cinco a cada cinco pessoas já deve ter recebido e passado vídeos, textos e mensagens com um olhar Poliana ou romântico para o momento atual. Mas quem realmente está se preparando para o mundo não ser mais da forma que conhece? Há um mundo da pílula vermelha para centenas de milhares de pessoas que são ignoradas pelo centro. E elas foram descartadas por tudo aquilo que de alguma forma queremos rapidamente resgatar para viver a ‘normalidade habitual’: o capitalismo, o patriarcado, a acumulação, o racismo e preconceito, o descartável, o desprezo por Gaia e seus seres vivos, a ancestralidade.

Esperamos que você esteja segura e saudável onde quer que esteja, se distanciando fisicamente durante esta pandemia do COVID-19. Estaremos mais fortes e mais resilientes, juntas. Mas para isso é importante viver a dor deste momento. Use este período para decidir a cada manhã que pílula quer tomar. Você realmente pode ser uma agente da transformação atuando mais na borda da transição. Mas agora é hora de enlutar pelo mundo que conhecíamos. Só assim será possível resistir e continuar trabalhando para a grande transição quando a normalidade e tudo que sustenta o mundo como conhecíamos retornar.

 “A escolha que nos cabe é sobre como viver, neste momento. Poderíamos usar o pouco tempo que nos resta para acordar mais. Recordo-me de um monge coreano que uma vez disse: “O pôr do sol também é lindo, não apenas o seu nascer”.” – Joana Macy

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