O que fazemos é essencial?

Quando olhamos para o que consta nos decretos oficiais autorizando o tipo de negócio que pode funcionar ou não durante a pandemia, vemos que não estamos lá.

Durante os 53 dias da quarentena oficial vimos os projetos que tínhamos se dividirem entre clientes adiando ou cancelando. Falando de facilitação, chegam pedidos de propostas para entender como realizar reuniões online e garantir menos dispersão das pessoas — foco em habilidades organizativas e técnicas –, mas nenhum pedido relacionado ao desenvolvimento de habilidades relacionais e emocionais ou na transformação da identidade, dois enfoques mais presentes na nossa atuação.

O ato de facilitar dá voz às dificuldades, abre caminhos para expressão, cuida da escuta, tornando mais fácil o que precisa desabrochar (seja no relacional ou estratégico). Apoiamos as pessoas por esse caminho de forma sutil e, mais do que ferramentas e métodos específicos, fazemos perguntas. Perguntas convidam à reflexão e nós — indivíduos e grupos — nos movemos à medida que nos colocamos em questão.

Lidar com nossos sentimentos é incômodo. Dói ter que olhar para o que está ocorrendo no momento presente. E nossa sociedade é boa em nos ensinar a evitá-los (até os reconhecidamente positivos, imagina em relação aos que soam como negativos). Já as emoções são nossa herança — boa ou ruim — de um sentimento vivido no passado. Carregamos as emoções em nossa “mochila”, algumas guardadas nos bolsinhos de fácil acesso, outras bem lá no fundo, escondidas até de nós mesmo. Gostamos de ver o trabalho da Tistu como uma academia que exercita a musculatura emocional em grupos de trabalho. E como todo músculo, quanto mais exercitamos, mais facilmente podemos utilizá-lo de uma hora para outra, com menos dor.

Os sentimentos são nossa força social, nossa atuação no presente, e a função de levarmos os grupos a vivenciarem seus sentimentos é gerar conexão, consigo e com a outra pessoa a fim de realizarem coisas juntos no futuro. Entretanto em momentos de crise a maior parte das pessoas está tentando se manter em pé apesar dos cacos. Portanto não querer olhar para as trincas e imperfeições é natural.

Em seu livro A Alma Imoral Nilton Bonder fala sobre os quatro comportamentos do corpo diante das emergências da alma: retornar para o que era, lutar contra o momento, “jogar-se ao mar” como uma atitude de desespero e orar para que o futuro seja uma reprodução do antigo. Acrescenta ainda que todos nós nos deparamos com lugares que se tornam estreitos em determinado momento da vida. Estes lugares, que outrora serviram para nossos desenvolvimento e crescimento, se tornam os limitadores do nosso próprio caminho.

Então, apesar das pessoas — e consequentemente os grupos — evitarem olhar para os seus sentimentos, hoje o caminho estreito já está colocado à nossa frente e é nossa experiência diante dele que ficará armazenada naquela nossa mochila das emoções.

Nós da Tistu também receamos olhar para nossos sentimentos. No entanto estamos topando aproveitar o momento para continuar exercitando nossa musculatura emocional e olharmos de frente para o lado negativo deles: a paralisia do medo, a passividade da tristeza, a destruição da raiva, a sensação de estar errada da vergonha e o véu da ilusão que uma alegria boba por estar vivendo o isolamento bem pode nos trazer.

Com essa reflexão voltamos à pergunta-título e vimos que faltava algo importante nela: O que fazemos é essencial ao cuidado?
A pandemia e a vida de muitos em isolamento em casa evidenciou que nossa vida é cheia de trabalhos do cuidado. Tanto os cuidados que atendem nossas necessidades de alimentação e saúde, como os de servidão, onde a economia gira há séculos sem remuneração e reconhecimento dentro e fora dos lares. 

Refletindo, compreendemos nossa atuação como um trabalho essencial do cuidado. O cuidar como verbo constrói relações. Construir relações envolve emoções e sentimentos, que podem ser encarados como positivos ou negativos. Mas uma coisa é certa: não dá para ter relações neutras. Isso é a não relação.

Desde o dia 24/03 estamos nos permitindo seguir sem nos descabelarmos. Ajustamos uma oficina aqui, lançamos um curso ali, respondendo aos pedidos de proposta. Porém, com energia represada e mais tempo, a criatividade floresce (lembra, somos o menino e as meninas do dedo verde)! Soltamos duas pesquisas e as respostas nos balançaram muito. Os resultados nos reafirmaram como o bicho ser humano necessita de interação, cria conexão naturalmente, gosta de estabelecer vínculos. E isso só reforça o quanto nosso trabalho é essencial, apesar de ficar invisibilizado diante de tantas urgências em momentos de crise.

Outro dia ouvindo o podcast do Emicida — AmarElo – O filme invisível — ele disse “A vida é imensa. Se a vida é imensa, nós também precisamos ser”. Todo trabalho do cuidado — qualquer um deles — requer uma postura ética já que envolve a responsabilidade sobre o bem estar das outras pessoas. E isso nos dá a dimensão dessa grandeza que o Emicida fala.

No final de 2019 foi a 1ª vez que fizemos um planejamento do que queríamos realizar. Ploft (é o barulho de cada post-it do planejamento caindo no chão). Daí planejamos revisitar nossa identidade visual e nossa festa (que seria agora dia 21.05). Ploft, ploftDiante disso, ao invés de tentarmos apagar o incêndio e já traçarmos um novo plano, resolvemos sustentar esse não saber e observar os fenômenos deste lugar estreito que estamos hoje. Precisamos refletir sobre quais qualidades espirituais dos tempos anormais nós da Tistu queremos carregar para os tempos normais. Nossas decisões hoje podem ser o maior planejamento destes 10 anos de vida.

Estamos vulneráveis. Mas mesmo assim temos hoje que nos preparar emocionalmente para um ano sabático. Não aquele planejado. Nosso trabalho de facilitação e vivências, da forma como gostamos de fazer, é presencial, tem toque, movimento, afeto, sentimentos, lágrimas e profundas reflexões. Mas e se desta forma não for mais possível? Queremos seguir por zooms, skypes e jitsus? E se vamos seguir, queremos abrir mão do cuidado com o sutil? Abraçar a incerteza e a ambiguidade faz valorizarmos outras perspectivas sobre nossa correta participação na complexidade.

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